NÃO É APENAS SOBRE UM CACHORRO. É SOBRE A BIOPSIA DE UM DIAGNÓSTICO CLÍNICO
Melzinho não era apenas um poodle cheio de energia. Era um cão alegre, sensível, parte viva do nosso cotidiano. Aos poucos, porém, pequenos gestos começaram a quebrar esse ritmo em meio a nossa miopia: um tremor diante de qualquer emoção ou ansiedade, uma respiração às vezes mais ruidosa. Nós os atribuíamos ao clima, à sua sensibilidade. Estávamos em viagem há dois meses, atravessando regiões mais frias do que nosso habitat, e os tremores pareciam apenas resposta ao frio ou ao seu temperamento intenso. Até o sábado, quando dois episódios de vômito levaram Melzinho a desmaiar e perder a consciência — o início de uma saga que nos faria passar por três veterinários em menos de 48 horas.
Na conversa rasa investigativa com o primeiro veterinário, os sinais mais sutis foram esquecidos. O primeiro diagnóstico: “os vômitos causaram os desmaios”. E vieram remédios — Cerenia, metilcobalamina e buscapina — enquanto eu segurava a respiração, na falsa crença de que seria apenas vômitos. Os tremores pararam, Melzinho parecia melhor. Mas era apenas silêncio antes da tempestade.
No dia seguinte, doze horas depois, veio a recaída: uma convulsão súbita e grave nos levou ao segundo veterinário. Entre hipóteses vagas, quase sem considerar a história clínica, falou em “intoxicação aguda” ou em uma possível questão cardíaca a ser investigada no próximo dia útil. Ainda assim, repetiu a mesma medicação injetável do primeiro colega — mesmo sem acreditar na mesma causa. Minutos após sairmos do consultório, Melzinho sofreu uma convulsão violenta, novamente, e o carro precisou dar meia-volta em direção à clínica. Foi medicado para convulsão, recebeu soro, e voltou para casa mais calmo, mas apático e aparentemente desorientado.
Horas depois, em casa, confirmei o que já estava presente antes da consulta: Melzinho não enxergava nem ouvia pelo lado esquerdo. Testes simples, que fiz eu mesma, mas que não foram realizados em nenhum dos exames clínicos. O sinal neurológico não foi investigado, embora eu tivesse contado que ele batia a cabeça nos móveis, desorientado. O segundo veterinário explicou: “é apenas consequência da convulsão”. Não era.
Hoje, 8 de setembro, a piora mostrou-se irreversível. A respiração de Melzinho tornou-se frágil, os desmaios se repetiam, as convulsões vinham mais frequentes e intensas. No terceiro veterinário, as hipóteses soaram vagas: tumor, AVC, problema cardíaco. Nenhuma conectava os sinais que se acumulavam há semanas, apesar da minha insistência de que tudo apontava para uma causa neurológica. Mas já era tarde. O quadro era gravíssimo, a respiração colapsava, e qualquer tentativa de intervenção serviria apenas para prolongar o sofrimento. Naquele momento, a eutanásia não foi desistência, mas o último gesto de amor que eu poderia oferecer.
No entanto, o que a clínica mostrava — e ninguém disse em voz alta — era mais profundo do que sintomas isolados. Os tremores recorrentes, sobretudo no frio ou em momentos de emoção, apontavam para disfunção neurológica progressiva, cerebelo e tronco encefálico. Os vômitos e desmaios sinalizavam comprometimento do bulbo. As convulsões e a perda de visão e audição unilateral indicavam lesão cortical, no hemisfério direito. O hábito de lamber coisas no chão meses antes, incluindo um episódio que lambeu chorume, numa distração na rua, ampliava o risco de encefalite infecciosa — cinomose, toxoplasmose, neosporose. O quadro não era gastrointestinal, nem cardíaco: era uma doença neurológica silenciosa, que se manifestava aos poucos e que só pode ser compreendida olhando a linha do tempo completa.
“Todo paciente tem uma história para contar”. A frase que dá título ao livro de Lisa Sanders ecoa forte agora. Porque Melzinho teve a dele — em forma de tremores “emocionais”, calafrios repetidos, respiração ofegante ao final, olhos que deixaram de piscar ao aproximar de pupila, crises convulsivas cada vez mais graves. Três consultas diferentes não conseguiram conectar essa narrativa. Cada profissional viu apenas um pedaço do enredo. E a história ficou sem tradução.
Essa falha não pertence apenas à veterinária. É da prática clínica em geral, quando a pressa ocupa o lugar da escuta e o diagnóstico se reduz a um rótulo rápido para silenciar sintomas. Pior ainda, quando a história clínica é abandonada e os exames se tornam a única âncora, como se os números pudessem responder sozinhos. Assim, o raciocínio se inverte: não se parte de uma hipótese construída a partir da narrativa do paciente, mas de exclusões sucessivas ditadas pelos resultados. Foi o que aconteceu com Melzinho — sangue, glicemia, parâmetros cardíacos. Nenhum deles respondia à pergunta central.
A tecnologia pode ser uma ponte. Ferramentas capazes de reunir os sinais dispersos da história clínica, cruzar padrões e levantar hipóteses teriam acendido um alerta: “encefalite? investigar causas neurológicas?”. Os sintomas estavam ali, claros, pedindo conexão. Talvez o destino de Melzinho não fosse diferente. Mas a leitura teria nos dado algo fundamental, nos momentos de angustia: respostas, menos incerteza, e a chance de transformar o cuidado em verdadeira compreensão.
Desta forma, o que nos pegou de surpresa em apenas 48 horas, na verdade, já vinha sendo escrito em silêncio havia meses. Os tremores recorrentes, a respiração mais ruidosa, a perda de peso discreta — sinais que pareciam banais ou atribuídos ao frio — eram capítulos iniciais de uma doença neurológica infecciosa em evolução. A súbita descompensação com vômitos, convulsões e perda sensorial não surgiu do nada: foi o desfecho de um processo que se desenrolava lentamente, invisível a olhos desatentos. Só a coleta cuidadosa da história clínica teria permitido enxergar a linha contínua que unia todos esses sinais e dado a chance de compreender, de fato, a narrativa que o corpo de Melzinho já contava.
Não é apenas sobre um cachorro. É sobre como diagnosticamos os que dependem de nós — cães, gatos, pessoas. Melzinho nos lembra que cada sintoma, por menor que pareça, faz parte de uma narrativa maior. E que o ato clínico é, acima de tudo, saber ouvir essa história.