CRÔNICA — “LEITE QUENTE, NERVOS EXPOSTOS”
O sol de Almería cozinha tudo: rochas, peles, ressentimentos. Em Hot Milk, Sofia empurra a cadeira de rodas da mãe como quem empurra uma hipótese teimosa — e toma notas mentais como a antropóloga que (quase) é. No filme, Rebecca Lenkiewicz injeta, com delicadeza, Margaret Mead no enquadramento: Sofia a lê, a cita, e o próprio filme costura imagens etnográficas (o transe balinês filmado por Mead e Gregory Bateson em 1937) como quem lembra que, às vezes, precisamos observar o ritual de longe para entender a dor de perto.
Não é capricho erudito. Mead vira bússola ética: o olhar de campo, a suspensão do juízo, a pergunta pelo contexto. Na Espanha “primitiva” — adjetivo que o roteiro deixa escapar, irônico — mãe e filha performam papéis antigos sob luz nova: a doente que paralisa e a cuidadora que ferve. O filme estreou em competição na Berlinale em 14 de fevereiro de 2025 e chegou aos cinemas no meio do ano; Lenkiewicz, agora diretora, troca o tratado pela fábula quente da dependência.
Se Sofia lê Mead, também lê, sem saber, Bowlby. No começo, o vínculo parece aquele apego ansioso-ambivalente (resistente): a figura de apego ora acena, ora some; a criança então maximiza sinais — clama, vigia, agarra — e quando a mãe se aproxima, tanto busca quanto resiste ao contato. No experimento da Situação Estranha, esse padrão (o Padrão C de Ainsworth) aparece como uma coreografia de “vem, mas não vem”. Em Almería, essa dança se repete: Sofia cerca a mãe, a protege, e, num mesmo gesto, a culpa.
Bowlby lembraria que um apego seguro nasce quando a figura é acessível e disponível, permitindo à criança internalizar uma base segura da qual parte e para a qual retorna. O cinema nos dá uma versão adulta dessa passagem: conforme Sofia encontra uma linguagem própria — a amante, o mar, o corpo que volta a ser seu —, a “parceria dirigida para a meta” deixa de ser o controle da mãe e vira o controle de si. É discreto, nada edificante, mas há movimento: da simbiose quente para um desapego funcional que, paradoxalmente, permite cuidado melhor.
A dor de Rose deixa de ser mistério clínico para tornar-se sintoma com endereço afetivo: médico, ela própria, a fisioterapeuta e o ex-marido apontam o mesmo mapa — nenhum exame fixa a causa, tudo conduz a uma origem emocional. A literatura clínica conversa com essa cena: ansiedade de apego costuma colar-se à dor persistente, e a catastrofização — esse pensamento que amplia o sofrimento — ajuda a explicar sua intensidade. Não é destino biográfico, é lente de aumento. Em quem vive a relação de apego pela via da prevenção/evitação, a autogestão da dor costuma falhar. O filme não precisa didatismo nem laudos: basta a imagem da perna que emperra quando a história trava — e, no final, o gesto discreto do enredo inclina o sentido para o psicológico.
Também importa o que liga e o que culpa. Em perdas e lutos (inclusive os perinatais), a autoculpa piora o ajuste psicológico, enquanto a conexão social — sensação de pertencimento real — medeia o impacto dos estilos de apego e ajuda a reconfigurar o sofrimento. Hot Milk sussurra isso nas entrelinhas: quando Sofia encontra uma trama de vínculos fora do eixo mãe-filha, a dor reorganiza-se; quando o círculo fecha sobre as duas, a culpa toma o volante.
Há ainda a antropologia no próprio gesto de filmar. Lenkiewicz já comentou o interesse de Sofia por Mead, e como essa referência se infiltra nas escolhas visuais: a etnografia como espelho, o Mediterrâneo como laboratório afetivo, o risco de exótico e a chance de empatia. Críticos notaram a presença de Mead como “atalho” simbólico; a mim parece o contrário: um lembrete de método. Para ver Rose, Sofia precisa primeiro descrição densa de si mesma.
Ao fim, não há milagre médico — há uma redistribuição da atenção. Sofia afrouxa a vigilância, Rose perde um pouco do poder que a dor lhe dava, e o vínculo troca de temperatura. Seguro, aqui, não quer dizer hígido ou harmônico; quer dizer suficientemente confiável para sustentar diferenças. Mead abriria o caderno: “o que mudou?”. Bowlby responderia: “a base”. E o cinema, generoso, deixa que a gente sinta antes de entender.
Se Mead nos ensina a suspender o juízo e observar os rituais do cotidiano — quem cuida, quem é cuidado, quem fala por quem —, Bowlby oferece a gramática invisível desses gestos: base segura, proximidade, separação, reparo. Hot Milk costura as duas coisas. Pelo olhar etnográfico, Sofia passa a tratar a própria vida como campo: descreve, compara, desloca-se — num movimento que a mãe chama, com ironia, de estudante de antropologia “permanente”. E, pela teoria do apego, a relação mãe-filha deixa de ser apenas calor e culpa para virar mapa de segurança: começa ansiosa-resistente, colada e vigilante, e termina com uma distância possível, na qual cada uma pode existir sem que a outra desabe. A dor de Rose — reiterada como emocional pelo médico, pela fisioterapeuta, pelo ex-marido e por ela mesma — em que ela fala sobretudo pelo corpo, não pelas palavras, é menos um enigma fisiológico, e mais relato de vínculo. Quando o laço se reorganiza, o corpo encontra outra linguagem. O filme deixa a porta entreaberta: não entrega cura, oferece possibilidade — um ensaio de base segura em construção.
No último movimento, o filme sugere que curar não é desfazer o apego, mas reconfigurá-lo. Mead dá o método (observar para compreender), Bowlby dá a estrutura (confiar para se separar), e o cinema dá a experiência: o mar, o sol e a cadeira de rodas viram cenário de um pequeno deslocamento sísmico. Ao trocar a vigilância por presença e a fusão por contorno, Sofia deixa de empurrar a mãe como hipótese teimosa e passa a caminhar ao lado dela como quem reaprendeu o caminho de ida e volta — a essência de uma base segura.