DEMÊNCIA COM CORPOS DE LEWY: O QUE MUDA QUANDO PENSAMOS EM NEURORREABILITAÇÃO
Por que identificar cedo, ajustar o ambiente e treinar habilidades pode aliviar sintomas e preservar autonomia.
Na sala de estar, Dona Lúcia começa a narrar a presença de “gente” no corredor. Em alguns dias, caminha arrastando os pés; em outros, parece atenta e conversa com todos. O sono é inquieto — à noite, mexe-se como se estivesse “dentro de um sonho”. O clínico chamou isso de “comprometimento cognitivo leve”. Meses depois veio o nome que liga as peças: demência com corpos de Lewy.
A demência com corpos de Lewy é uma doença neurodegenerativa marcada por flutuações de atenção, alucinações visuais bem formadas e sinais motores parecidos com o Parkinson (rigidez, marcha curta), além de grande sensibilidade a antipsicóticos. Quase sempre, há pistas anos antes do esquecimento: distúrbio comportamental do sono REM (a pessoa “atua” os sonhos) e redução do olfato despontam muito tempo antes dos problemas de memória. Em fases iniciais, chamam atenção as oscilações de foco e alerta, episódios de confusão sem causa aparente e alterações da escrita e do andar.
🖍O que o cérebro está dizendo
Por baixo do capô, a doença reorganiza redes que sustentam visão, atenção e movimento. Sistemas que usam acetilcolina — um mensageiro químico essencial para foco e vigilância — ficam especialmente comprometidos. É por isso que a atenção “vai e vem”, e por que estímulos visuais ambíguos podem virar pareidolias (ver rostos ou figuras onde não existem) e alucinações. As conexões entre tronco cerebral, tálamo e áreas occipitais ficam frágeis; outras ligações aumentam como tentativa de compensar. Essa combinação ajuda a explicar por que ajustes ambientais simples reduzem o sofrimento.
🖍Diagnóstico precoce: o valor de rastrear “sinais vermelhos” no comprometimento cognitivo leve
Quando alguém recebe o rótulo de “comprometimento cognitivo leve”, vale procurar ativamente por sinais que apontem para demência com corpos de Lewy:
- Sono REM agitado (relatos de chutes, socos, falar dormindo, pular da cama).
- Olfato reduzido há anos.
- Atenção e clareza mental que flutuam ao longo do dia.
- Alucinações visuais vívidas (pessoas, animais) ou ilusões (pareidolias).
- Sinais motores discretos: rigidez, passo curto, dificuldade para iniciar ou parar.
- Quedas, desmaios e disfunção autonômica (pressão oscilante, constipação).
Esses elementos, em conjunto, mudam a rota do cuidado: ajudam a evitar medicações que pioram (antipsicóticos comuns) e a priorizar reabilitação e suporte ambiental desde cedo.
🖍Neurorreabilitação: quando o ambiente e o treino viram tratamento
Não há cura hoje, e os remédios disponíveis têm limites e riscos. A boa notícia é que intervenções não farmacológicas, iniciadas cedo, podem retardar perdas, diminuir alucinações e reduzir estresse de pacientes e cuidadores. Pense em três pilares.
1) Modulação do ambiente
O objetivo é diminuir ruídos visuais e aumentar a previsibilidade:
- Luz e contraste: boa iluminação difusa (evitar sombras fortes e brilho direto); aumentar contraste em degraus e portas; retirar espelhos muito grandes – para evitar virarem gatilho do “sintoma do espelho” (não reconhecer a própria imagem).
- Pistas visuais claras: calendários grandes, relógio analógico, placas simples com palavras e ícones; caminhos livres em casa.
- Rotina estável: horários consistentes para refeições, banho, sono. Transições suaves evitam desorientação.
Pequenas mudanças assim diminuem alucinações, quedas e confusão — e não exigem tecnologia sofisticada.
2) Treino cognitivo funcional (com metas)
Neurorreabilitação cognitiva, quando traduzida para o cotidiano, funciona melhor:
- Atenção e ritmo: tarefas curtas com pausas programadas; uso de música ou contagem para marcar passos e movimentos.
- Memória voltada à ação: cadernos de rotina, listas visuais, agendas e alarmes para tarefas-chave (medicação, compromissos).
- Linguagem e conversa: apoiar a evocação de palavras com pistas (categoria, primeira sílaba); reduzir ruído de fundo; falar olhando nos olhos, frases curtas.
A ideia não é “fazer teste”, e sim ensinar estratégias compensatórias que mantêm autonomia.
3) Corpo em movimento, com segurança
O padrão motor da doença pede fisioterapia focada em marcha, equilíbrio e início de movimento:
- Passos maiores guiados por marcações no chão, pistas auditivas (metrônomo, palmas) e exercícios de mudança de direção.
- Prevenção de quedas: ajustar calçados, retirar tapetes, implantar barras de apoio.
- Atividade física prazerosa e monitorada (dança, caminhada assistida) para humor e condicionamento.
Mesmo quando a força parece “boa”, a dificuldade é organizar o movimento. Pistas externas ajudam o cérebro a planejar.
🖍Comportamento e emoções: reduzir sofrimento é parte do tratamento
Alucinações e delírios sobrecarregam famílias e são motivo frequente de internação. Antes de pensar em medicamentos, vale:
- Investigar gatilhos (iluminação ruim ao entardecer, ambientes lotados, febre, dor, constipação, remédios novos).
- Responder ao sentimento, não ao conteúdo: acolher o medo, redirecionar para atividade conhecida, ajustar luz e contexto.
- Terapias de apoio: música ao vivo, reminiscência (álbuns, objetos significativos) e atividades estruturadas ao estilo Montessori reduzem apatia, ansiedade e agitação em muitos estudos.
Quando remédios forem necessários, devem ser decisão médica especializada — pessoas com demência com corpos de Lewy podem piorar com antipsicóticos comuns.
🖍Cuidadores também precisam de neurorreabilitação
Cuidar de alguém com alucinações e flutuações é exaustivo. Psicoeducação (o que esperar da doença), treino de manejo e grupos de apoio diminuem o uso de antipsicóticos, melhoram humor e evitam internações desnecessárias. Planejar cedo adaptações da casa, rotinas e rede de suporte reduz custos e sofrimento no médio prazo.
🖍O que observar ao longo do caminho
- Sono REM agitado e queda do olfato antecedem em anos — falar disso nas consultas muda desfechos.
- Flutuações de atenção não são “manha”: são parte da doença. Organize tarefas nos horários de melhor alerta.
- Visão enganosa: sombras, padrões e espelhos podem alimentar ilusões e alucinações — simplifique o campo visual.
- Quedas não são detalhe: previna como prioridade desde o início.
- Sensibilidade a remédios: sempre informe que há diagnóstico de demência com corpos de Lewy ao procurar atendimento.
🖍O que ainda falta
Precisamos de ensaios melhores que mostrem como as intervenções ambientais e de treino modulam as redes cerebrais afetadas pela doença, e de programas de neurorreabilitação que combinem, na medida certa, atenção, visão e marcha. Enquanto isso, a ação precoce e prática já oferece ganhos mensuráveis: menos alucinações, menos quedas, menos crises — e mais tempo de vida vivida com dignidade.
Mensagem final: na demência com corpos de Lewy, reabilitar é redesenhar o dia a dia. Luz certa, pista clara, passo guiado e conversa simples não curam — mas mudam a experiência de adoecer. Para muitas famílias, essa diferença é tudo.